[Monocromatismo]
quinta-feira, 10 / maio / 2007 at 12:16 am 9 comentários
Todo dia, ela acordava com o céu ainda escuro, tomava café preto e saía de casa. Esperava o ônibus numa parada acinzentada, subia no veículo cor-de-lata, pagava com dinheiro sujo e opaco e via o cobrador dar um sorriso amarelo.Entrava no prédio que tinha as paredes descascadas, sentava entre quatro divisórias cor de gelo e digitava o dia inteiro em um teclado bege.
Mantinha ao lado do computador um vasinho cheio de limo, com algumas plantinhas que, pela ausência de sol, não conseguiam ser verdes.
Almoçava um sanduíche gelado de pão com queijo, escovava os dentes com creme dental branco.
Às duas, três e trinta e quatro, quatro e vinte e sete e às cinco da tarde, bebia água em copos descartáveis.
Voltava pra casa às seis da tarde, o sol já estava escondido, deixando apenas aquela sujeirinha amarela na borda do céu.
Já em casa, trocava o jornal do fundo da gaiola dos passarinhos, dava uma olhada meio sonolenta na novela e ia escutar rádio.
Não se sabe bem o que aconteceu, mas naquela noite a estação de rádio que tocava o melhor da música instrumental chiava, chiava…E nada de conseguir uma sintonia. Ela acabou por desistir daquela estação, e procurou uma que sintonizasse direito.
Encontrou. Milton Nascimento inundou a casinha pardacenta: “Porque se chamava moço, também se chamava estrada…”, e ela pensou em tirar férias, pegar uma estrada bem longa, o vento nos cabelos…
Em seguida, Flávio Venturini continuou: “Cai o dia e é assim, cai a noite e é assim: essa lua sobre mim, essa fruta sob o meu paladar…” Ela pegou um lápis de cor verde-mar e começou a riscar as paredes de casa. Nenhum decorador aprovaria, mas ao menos estava colorido.
Quando o 14 Bis começou a pedir “Canta que te quero bem, brilha que te quero luz, andaluz…”, ela soltou os passarinhos da gaiola e fez surgir um arco-íris na ponta de cada dedo.
[este texto já havia sido distribuído por e-mail, para uma platéia seleta e especial, no dia 02.05.2006]
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1.
claudia lyra | quinta-feira, 10 / maio / 2007 às 12:55 am
Eu AMO esse texto!!!!!!!1
Ps – ai, ai, eu faço parte da “platéia seleta e especial”, hehehe… desculpa aí, tá!
2.
neutron | quinta-feira, 10 / maio / 2007 às 9:02 am
Eu tô lutando pra não deixar a rotina sufocar assim…
PS.: ela tava ouvindo a Nova Brasil Fm, né? hehehehe
3.
Marília | quinta-feira, 10 / maio / 2007 às 10:43 am
Puxa, que texto lindo! Adorei as imagens que se formaram na minha cabeça…
4.
Michelle | quinta-feira, 10 / maio / 2007 às 3:23 pm
Eu tenho pra mim que ela estava ouvindo a *Tabajara*FM*105.5MHz*, hohoho..
Meu colega deve estar chegando por aí esses dias.
Ele tem uma filha que escreve lindamente.
[Vc tb escreve lindamente! Deu novas cores pro meu dia!]
Cheiro!
5.
Luciana | quinta-feira, 10 / maio / 2007 às 10:29 pm
🙂
Hj vim no ônibus pensando em Noites com sol, Venturini também… toda vez que eu ouço essa música, eu sempre imagino um quarto escuro em Belo Horizonte sendo invadido pelo sol, de repente, enquanto duas pessoas se amam demais… talvez nem seja imaginação… talvez seja lembrança… ou saudade… 😉
Eva, queremos entrevistar você… Pat e eu… aparece uma noite dessas pra gente conversar as três no MSN… É justo que depois da entrevista dela e da minha entrevista a próxima seja você, já que um dia você herdará aquilo tudo… hahhahahahahahaahahahahahha
É sério… vamos conversar… 😉
Beijo.
6.
Bebel | sexta-feira, 11 / maio / 2007 às 7:20 am
Eu lembro, eu lembro…!!!
:>
Bjus!
7.
Vivien | sexta-feira, 11 / maio / 2007 às 9:42 pm
Eu adoro seus textos. E não faço parte da turma seleta…humpf!
risos
8.
ana p. | sábado, 12 / maio / 2007 às 11:34 am
Me fez lembrar (de novo) de uma música do Counting Crows:
“I am colorblind
Coffee black and egg white
Pull me out from inside…”
Que basicamente quer dizer:
“Eu estou daltônico
O café é preto e o ovo branco
Me tire desse interior…”
E por aí vai. Mas vc falou bem mais bunito!
9.
poetamatematico | quarta-feira, 16 / maio / 2007 às 10:01 am
rsrsrs
Ya!
Uma belezura..